Minha querida:
Pego no meu cadernito, desço as escadas e vou sentar-me ao teu lado. Desajeitada acabo por te acordar. Elevas os olhos para ver quem acaba de chegar. Levantas-te e ficas parada sobre as tuas patinhas traseiras. Pouso o caderno e ponho as duas mãos em volta do teu focinho. Tens os olhos mais ternos que já senti. Perlongo-me na tua face… percorro depois todo o teu corpo, agora tão magro. Estás tremula, fria.
Para me recordar dos velhos tempos abro as pernas e dou duas pancadinhas numa delas. Sinto-te a desdobrar, tropegamente, as patinhas traseiras e dando duas, talvez três voltas sobre ti própria, acabas por te prostrar bem juntinho a mim. A tua cabecinha fica pousada na minha perna direita e o teu corpo estendido entre as minhas pernas. Afago-te as orelhas enquanto te vou dizendo palavras doces. Sei que não as entendes, mas acho que percebes quando te falo com carinho. Não consegues compreender o significado das minhas palavras mas podes senti-las! Vais ficando mais tranquila, sinto a tua respiração a acalmar e a tosse já não é, agora, tão frequente. Também sinto que ficas mais quente.
Uma vez li que os cães não dormem verdadeiramente; nunca atingem estados de profunda tranquilidade o que, supõem-se, não permite ao seu cérebro desenvolver-se mais. Mas tu estás a dormir. Profundamente! Ouço as tua respiração acompanhada de outros sons… acho que ressonas! Sorrio e fico a lembrar-me de todas as vezes que, como hoje, te deixaste adormecer, comigo. Só comigo.
Já vivemos tantas aventuras juntas. Relembro cada uma das vezes que fomos ao Gerês: quando chegávamos à parte mais difícil do trajecto, aquela que serpenteava a montanha, ela ficava com a boca semiaberta e com o corpo mole. Quando encostava o nariz frio à minha face já a adivinhava.
- Tenho sede!
Vou à mala do carro e tiro a garrafa de água que tem no rótulo o seu nome. Nunca me esqueço dela! Tem um bocal mais fino e vai lançando água em pequenas lufadas que ela consegue beber. Quando fica satisfeita afasta-se e corre para o carro, instalando-te, confortavelmente no seu lugar. Passa o resto da viagem sentadinha e com o focinho meio de fora. Adoro vê-la assim! As orelhas abanam freneticamente com o deslocamento do ar e sente-se nela um prazer enorme pelos novos cheiros que vai detectando.
Enquanto era ainda um bebezinho foi, uma vez, connosco até uma pequena praia fluvial do rio Douro. Nesse local o rio é estreito e facilmente atravessável. Sempre que iniciávamos uma viagem ela vinha, atrapalhada, atrás de nós! A meio da viagem acabava sempre por ser preciso transporta-la. Recordo-me de me virar de costas e de a pousar na minha barriga enquanto nadava lentamente para não a deixar cair! Quando me aproximava da margem eleva-a num dos braços e enquanto me propulsionava com as pernas usava o outro braço para manter a cabeça à superfície. Ela ia estranhamente calma, confiante! Como se tivesse a certeza de que eu nunca a largaria.
Recordo também, numa dessas viagens em família, quando o meu irmão decidiu fingir que se afogava. Ela estava na margem, deitadinha na toalha que eu lhe tinha estendido... Quando ouviu os gritinhos dele e o som das mãos a chapinharem na água voou para o rio e nadou com uma energia que nunca lhe tinha visto. Quando chegou ao meu irmão cravou-lhe os dentes num braço puxando-o para a superfície. Absolutamente impressionante!! O meu irmão não se apercebendo bem do que se passava lutava para se libertar, mas ela agarrava-o ainda com mais força. Com a minha ajuda viemos os três para a margem. Ela lançou-se então ao meu irmão lambendo-lhe toda a cara… e os braços. Só nesse momento percebemos o que se tinha passado e prometemos nunca mais brincar com assuntos sérios.
Relembro as doenças, os dias maus. Perco a conta às horas tão longas que passamos, sempre juntas, no veterinário; aos pontos que todos os dias desinfectava, até que os pudesse retirar. Os comprimidos que, com paciência, te fazia engolir; a comida que, muitas vezes, tive de te dar à boca; as sessões intensas de fisioterapia que tantas lágrimas provocavam, às duas… Todos estes são momentos que guardo, meticulosamente, na memória.
Acordas.
Por entre murmúrios incompreensíveis levantas-te e encaras-me. Os teus olhos tocam profundamente nos meus e ficamos assim, como que a decorar-nos. Há quase três anos que só temos o fim de semana para partilhar e desde então passamos muito mais tempo a sentirmo-nos...
Fazes-me tanta falta!! És a minha companheira dos dias tristes. Quando éramos as duas mais novas, costumava correr para ti cheia de lágrimas. Conversava contigo: fazia mil e uma perguntas… propunha mil e uma respostas. Não me ajudavas com palpites ou concelhos, mas olhavas-me cheia de ternura e, muitas vezes, lambias as minhas lágrimas. Colocavas o teu focinho húmido na minha testa e ganias ao som dos meus soluços, como que a tentar dizer-me que partilhavas a minha dor. Eu adorava ficar ai, no teu colo, como costumava dizer-te. Abraçava-te com força e sentia o teu coração a bater até que as nossas respirações se alinhavam.
Hoje, já é tarde na noite mas vim-te acordar porque estou cheia de tristeza. Corre-me nas veias uma sensação de revolta que me faz mal, que me torna vazia e rude… seca! Cada vez é mais difícil observar-te o olhar… Está a ficar mais pálido, embranquecido com as cataratas que não permitem que eu possa ver o brilho que dantes tinha. Percorro o teu focinho com o meu dedo... Deste a ponta fria, atravessando os olhos até atingir o topo da cabeça. Agora já não piscas os olhos. Os teus reflexos estão lentos e já me conheces os hábitos… sabes que não te vou ferir. Encostas a cabeça ao meu peito e agarro-te com mais força. Não seguro mais as lágrimas e começo a soluçar!
A época de Natal está, para mim, associada a acontecimentos demasiado tristes que me fazem viver um natal diferente de todos as outras pessoas. Nesta época, qualquer problemazinho que me possa afectar é, por mim, agravado… tomando quase o tamanho e a força destrutiva de um tsunami.
Levantas a cabeça, e como já não fazias há muito, secas as lágrimas que me descem pela face. Primeiro encostas o focinho à minha bochecha esquerda, depois à direita, sempre com uma ternura que só encontro em ti. Olho-te mais uma vez antes de pousares a cabeça no meu ombro. Ficamos assim, longos minutos, enquanto vou reflectindo sobre meu dia… sobre as importantes decisões que havia tomado essa tarde, sobre as palavras erradas, e as acertadas.
- Sabes, minha querida… já me tinha esquecido de como é bom “falar” contigo! – digo-lhe baixinho.
São 5 da manhã… o sono começa a vir, e não lhe quero resistir. Pego nela ao colo e coloco-a na sua caminha. Cubro-a com a mantinha quentinha que lhe comprei para este natal, e enquanto lhe afago as orelhas mais uma vez, peço-lhe que não se esqueça da promessa que um dia a fiz fazer:
- Não te vais embora sem mim!!! Prometeste!
Dou-lhe um último beijo de boa noite, e penso: “és uma cadela maravilhosa”!!!
ss