14 de Fevereiro… um dia marcado, definitivamente pela cor vermelha. Não um vermelho dos corações anafadinhos que se vêm por toda a cidade. Não um vermelho de um qualquer ramo de rosas dos que se viam nas mãos mulheres atarefadas, em mais um dia igual aos outros. Não o vermelho das faces de dois jovens que corriam para apanhar o metropolitano; não o vermelho dos sacos que cada um carregava. Definitivamente… não o vermelho de um banco de jardim num tempo longínquo. Para mim, vermelho é a cor do cravo, e os cravos são saudades… tuas!
Foi por essa cor: a cor das lembranças, dos ideais… dos sonhos… que me levantei cedo nesse dia. Na noite anterior, enquanto adormecia, pude ver o teu sorriso e quase senti a tua mão enrugada a demorar-se no meu cabelo. Foi a forma que a minha outra metade (inconsciente) encontrou para me dizer que tinha de te visitar.
Pouco passava das 9 quando cheguei à estação de São Bento. Devia ter seguido para Campanha, mas essa estação já me é demasiado familiar: hoje queria que o meu dia fosse diferente. Com muita calma fui caminhando para a bilheteira, apreciando cada um dos milhares de azulejos:
- Bom dia! Queria um bilhete para Valadares.
Não sei exactamente porquê, mas gosto muito da palavra “Valadares”, é aberta, alegre! Acho que pronuncia-la provoca um esgar de sorriso até nos lábios mais tristes… Valadares! Soa mesmo bem.
A viagem foi feita por um caminho cansado de ser percorrido… por mim. Mas hoje absorvi a paisagem de uma forma diferente… menos cansada (não tive de correr para apanhar o comboio, e se o tivesse perdido, provavelmente não me teria preocupado, pois hoje o meu dia não tinha horas… tinha momentos que eu desejava ardentemente saborear).
Chegada a Valadares, reparei que nos canteiros da estação todas as flores estavam murchas. Dantes havia pequenos jardins bem desenhados e cheios de flores coloridas durante todo o ano… Lembro-me até que havia girassóis (uma vez roubei um… o que me custou uma reprimenda de uma dolorosa meia hora). O edifício da estação está cuidado, pintado de novo num branco ainda imaculado. O relógio antigo, que eu adorava ver mover-se, lá continuava a galgar os segundos e a cruzar os minutos de cada hora. Em criança lembro-me de achar que aquele relógio andava demasiado de pressa…
- Não deve estar bom – pensava sempre.
À medida que crescemos o tempo parece fugir-nos e os dias nunca chegam para fazer o que planeamos… Mas olhando para o mesmo relógio, hoje ele parece-me igualmente saltitante e move-se da mesma forma impiedosa… as vezes é bom saber que há coisas que nunca mudam.
Deambulei pelas ruas da Vila bebendo cada mudança. As grandes amoreiras que havia nas escolas primárias já não mais erguiam os seus longos e altos ramos. As escolas também já só existiam na minha memória. Ocorreu-me que também os bichos-da-seda que habitavam por lá já tivessem sucumbido à pressão imobiliária. Continuando pela mesma rua encontro o largo da igreja com o seu coreto bem conservado. As velhas tílias estendem os seus ramos totalmente despidos esperando pela Primavera para se voltar a exibir de verde.
Entro no recinto da igreja. Não gosto de templos, parecem-se sempre lugares desconfortáveis, frios! Talvez porque são lugares de um culto em que não acredito… para mim estão cheios de sentimentos que não me preenchem, e por isso fazem-me sentir gelada!! Contorno o edifício sem sequer o olhar. Enquanto vou serpenteando pelos caminhos estreitos de cimento, prendo o olhar no céu: é o único refúgio possível, porque tudo o resto são flores, velas… e caras de pessoas que já não existem. Também não gosto de cemitérios (quem gostará!?)… Não pelo medo de uma alma penada, ou de um espírito traquina… Não gosto pelo significado: a morte! O fim! É tão triste quando não há mais nada, quando não há mais dias, mais sorrisos, mais lágrimas, quando não há mais oportunidades de mudar, de repetir, de aprender e de ensinar… quando não há mais vida! É um vazio e é aterrador!
Sem dar conta já cheguei à tua campa, acho que as minhas pernas já estão programadas para funcionar sem o comando dos meus pensamentos, que se perdem sempre pelo vazio deste lugar tão feio.
Não te trouxe flores (desta vez cumpri o prometido), trouxe só saudades… muitas saudades das histórias que me contavas, dos ditados que repetias milhares de vezes. Saudades da mulher cheia de força que eras… Saudades dos momentos que vivemos juntas.
Sento-me na ponta do mármore branco do jazigo. Tem um veio castanho claro muito bonito e lembro-me que foi por isso que fiz pressão para que o escolhessem. Pouso a mão na pedra fria e, levemente, percorro-a de uma lado ao outro. Sei bem que não podes sentir o carinho que transmito para a pedra… mas continuo assim mesmo. Hoje a minha “visita” tem um sentido especial… Quero conversar contigo, contar-te segredos… sonhos, rever memórias contigo… memórias que me enchem mesmo nos dias mais tristes e que me fazem ter orgulho em mim, mesmo naqueles momentos em que me sinto falhada.
Era dia 24 de Dezembro, em casa sentia-se a azáfama do Natal… Chegamos cheios de sacos com presentes e cada um ia olhando para o volume dos embrulhos, tentado imaginar o que estaria por baixo do papel em tons de vermelho. Não sei bem a razão, mas acho que toda a gente almeja por um presente gigantesco com um grande laço a condizer. Eu mesma sonho com um embrulho tão grande que não o pudesse carregar sozinha… Mas nesse Natal sabíamos que ia ser diferente. Na cabeceira da mesa faltava-nos a referência da família… a matriarca que era um exemplo para todos… sem excepção. No ano anterior tínhamos arranjado uma solução engenhosa de te transportar para a mesa. Sentamos-te no teu cadeirão vermelho e os dois desceram as escadas pelas mãos dos homens da casa. Nunca te pude dizer, mas adorava, e adoro, o carinho que tinhas por todos eles. Só tiveste filhas… E só tiveste netas. Por isso acho que fizeste desses homens os teus filhos e os teus netos.
Recordo-me de ter subido as escadas com alguma relutância… custa-me tanto ver-te assim, prostrada numa cama, sempre com os olhos semi-cerrados. Mas enchi-me de força e subi… pousando os dois pés em cada degrau… demorando-me. Quando entrei no teu quarto tinha um nó apertado na garganta. Pousei a minha mão gelada sobre a tua e disse-te um “Olá vó!” com todo o amor que tinha. Estremeceste… e abriste os olhos. Abriste muito! Pude vê-los bem enquanto olhavam os meus. Apertaste a minha mão com força e disseste “Sílvia, minha netinha” com aquele sorriso aberto que tanto te caracterizava. Nunca me esqueço desse sorriso, nunca. Pela sua beleza, pelo seu sentimento, e pelo orgulho imenso com que me encheu. Há, mais de dois meses que tinhas deixado de reconhecer as pessoas. A medicação contra as dores deixava-te num estado suspenso, difuso. Apertei ainda mais a tua mão e beije-te a face. Ficaste agitada e voltaste de novo às palavras sem sentido, os olhos fecharam-se e pude ver duas lágrimas a percorrer a tua face até se precipitarem na almofada.
Quando desci as escadas para voltar à sala, sentia-me a flutuar… Sentia-me abençoada pelo sorriso mais bonito da pessoa mais bonita que conheci. Esse Natal foi silencioso. Não te ouvíamos a refilar. Aquelas horas entre o jantar e a meia-noite foram dolorosas, porque, pela primeira vez não as passamos todos juntos. Cada um dispersou para um local diferente. Alguns viam TV, outros liam revistas. Havia um ou outro ponto de conversa, mas não se sentia A Família como dantes. Ficamos perdidos: ninguém jogou ao bingo porque eras sempre tu a tirar as peças daquele saco vermelho… Não houve brincadeiras com as “rodelinhas” vermelhas que serviam para marcar os números de cada cartão… o avô não colou uma das fichas na testa e não pronunciou sons estranhos a imitar um indiano… Ninguém roubou, sorrateiramente, nenhuma moeda do envelope do vizinho. Ninguém gritou Bingo!! logo ao primeiro número. Ninguém ganhou! À meia-noite não estávamos todos na mesma sala, não houve gritinhos histéricos de felicidade. Reinava uma tristeza profunda pelo primeiro ano sem a tua alegria, o teu sorriso.
No dia 25 não subi as escadas para te ver… custava-me sempre tanto ver-te assim parada. Odiei-me por não conseguir que as minhas pernas se movessem… Nem depois do jantar, quando todos subiram para se despedir. Não subi. Durante o caminho para casa, enquanto olhava as luzes reflectidas no alcatrão molhado, arrependi-me muito de não te ter tocado novamente, de não te ter beijado a face, de não te ter dito que te amava. Deitei-me com os olhos vermelhos de lágrimas que não chorei. Dormi, dormi, dormi… até o telefone ter tocado no dia seguinte…
Dia 26 de Dezembro… Não é só o dia em que um terramoto destruiu meio Irão, em que um Tsunami arrasou meia Ásia… É o dia em que metade de mim se derreteu em lágrimas, em lembranças, em vazio.
Hoje, dia dos namorados, lembro-me de ti: pelo vermelho e pela lição de vida que me deste: nunca me falavas de amor, nunca me falaste de paixão. Falavas só dos sonhos que comandavam a tua vida, da coragem, e da força que é preciso para os perseguir… e da felicidade que é alcança-los. Falavas-me da amizade e do dever de fazer sempre o certo, sempre! Mesmo que doa muito: “Nunca faças aos outros o que não gostas que te façam a ti”. Falavas-me de como precisamos dos amigos e de como é difícil tê-los sempre por perto. Falavas-me do perdão e do amor incondicional que devemos ter pelas pessoas de quem gostamos… pela família. E que bonita família construíste vó… sozinha! Que orgulho.
Olhando para a tua lápide, hoje compreendo na totalidade uma das frases que tantas vezes repetias:
O passado não foi feito para voltarmos atrás, foi feito para nos apoiarmos quando queremos dar um passo em frente...
E tu és o meu grande apoio: o pilar que vai sempre suportar a minha ponte e que nunca me deixará cair no vazio.
Hoje dei mais um passo em frente.
ss