Tinham ficado os planos para Junho. Eram planos delineados com carinho, o mesmo carinho que nos fez sair de casa, cheios de sono para nos fazermos à estrada. Novamente até à Régua. Por esse serpentear do rio, esse verde de vinha farta de folhas.
Em Maio a tia estava doente. A gripe atacava-lhe o corpo velho e fraco. Mas a fé? Essa era inabalável. A tia, a minha tia Maria, tinha uma promessa à nossa senhora dos Remédios. E a tia, a minha tão terna tia Maria, não queria morrer sem pagar a promessa que tinha feito. Disse-o assim, com esta capacidade de desprendimento da vida. Esta tia que eu nunca tinha ouvido falar do fim. Esta tia que eu pensava que nem tinha fim…
A promessa era dura demais para ser cumprida por alguém com aquela idade. A promessa era tão dura quanto a vida lhe foi. E ela aguentou. Insistimos,ainda assim, que aquele sacrifício de joelhos é demasiado para a idade dela. Que a Santa decerto compreenderá que a promessa seja paga por outra pessoa. Mas àquela tia ninguém a demove, ninguém lhe tira da ideia o que ela já tem na ideia. É teimosa, é rija e, mais que tudo, tem fé.
Eu tinha saído de casa preparada para fazer de joelhos os metros ou quilómetros que fossem necessários. Fá-los-ia com fé na fé da tia. Não há em mim fé na Santa. Nem nesta, nem em qualquer outra. Sou uma pessoa de esperança, mas não uma pessoa de fé. Não era muito o que tinha para oferecer à tia… Mas pedi-lhe, roguei-lhe que me deixasse pagar por ela a promessa que tinha feito. Que pagaria com gosto e com essa tal de fé. Que o faria porque gosto dela, muito, e porque o sacrifício a que se propunha era um sofrimento para mim.
Mas a esta tia ninguém a demove. Ela acha que pode. Ela pode, e por isso quer e vai fazer o que prometeu, independentemente do que lhe possa doer…
Apertei-lhe, com uma guita, um pano grosso à cintura (tão fina). E aquele corpo velho, magro e cansado ajoelhou-se diante de mim. Só a minha mão, era o que ela queria, uma mão e uma companhia. Não queria pena ou pesar. Queria uma mão. E eu dei-lha, apertei-lha e senti-a penar a cada passo do seu sacrifício.
Fiz todo o caminho ao lado dela. Senti no braço o fraquejo das pernas cada vez que havia um degrau a subir. As lágrimas caíam-me sem ela ver. Caíam e caíam porque nada mais eu podia fazer do que dar-lhe a mão. E o meu coração apertava-se. O do meu pai também. Ele que caminhava ao lado da tia, em pé, mas sentindo a mesma penitência.
Que força é esta que move uma velha de 80 anos perante tamanho sacrifício? Que força é esta a da fé? Tudo isto é incompreensível aos olhos de quem não acredita, de quem não sabe, nem sente o que é a fé. Mas não deixa de ser comovedora e até inspiradora esta luta com o corpo. Esta fé no sacrifício…
Foi inesquecível esta viagem a Lamego, esta viagem ao munda da tia Maria. Da minha tia Maria. E voltar àquele vale, àquela vinha, às flores e às sementes já separadas para mim (ainda que ela saiba que agora estou em França! A tia não se esquece de nada). Tudo isto, todo este dia, em família, volta a encher-me a alma de qualquer coisa que não sei nomear mas que poderia ser fé na vida.
A Maria, a minha (tão inspiradora) tia Maria sabe já de cor os dias das eleições:
- Calha nas Vindimas as pró governo…
E vai votar (se Deus quiser, diz ela) que não se deixa para os outros a decisão.
A minha tia Maria tem mais planos:
- Fazer o Douro de barco até Espanha, interessa-vos?
Eu tenho uma tia.
E tenho fé (à minha maneira).
Fé que a vida nos vai permitir mais uma viagem.
ss