A noite tinha sido curta.
Eram 8h30 e já estava à porta de casa embrenhada num nevoeiro gélido de Abril. Levava um sumo no bolso e duas bolachas enfiadas na boca.
Vila Real agora é tão perto!
As maias e tojo vão pintando todo o caminho de amarelo. É Primavera e os montes estão coloridos de flores. Vêm-me à memória aquelas viagens ao Alentejo nas férias da Páscoa, onde o verde dos montados era interrompido pelo vermelho das papoilas, pelo amarelo dos malmequeres, e o rosa arroxeado dos cardos. Mas isto não é Alentejo: é Trás-os-Montes. É Douro (o meu Douro).
Depois de atravessar um pouco de chuva no Marão, Vila Real aparece iluminada por entre as nuvens cinzentas e farrapinhos de azul. Com o serpentear da estrada ia crescendo a angústia. Sabia porque ia; porque tinha dormido tão pouco. E ao pensar no que ia encontrar as lágrimas queriam escorrer-me pela cara. Mordia os lábios. Cerrava os dentes…
Fazemos um reforço de pequeno-almoço. Respiro fundo o ar gelado da serra e sinto-o a queimar na cara. Há mais caminho para percorrer. Precisamos chegar ao rio: o destino é a Régua.
Tenho uma tia. É uma tia-avó, irmã de uma avó que já não tenho. É uma tia linda que vive em Travassinhos, Santa Marta de Penaguião, bem na fronteira com a Régua. É dona de todo um vale, que se lhe entra pela janela. Leiras e leiras de vinha que mudam de cor a cada estação do ano. E uma cerejeira velha, quase tão velha como a minha tia. A Tia Maria. A minha Tia Maria.
Esta nova auto-estrada é a mais bonita de Portugal.
A vista para o Douro vinhateiro é magnífica e mais do que vê-la, adoro ver o entusiasmo do meu pai a chegar à terra.
Quando era mais pequena não gostava de ir a essa terra. Porque a casa de banho ficava na loja, porque não havia água quente, porque tudo tinha um aspecto menos limpo do que eu estava habituada, porque o cheiro a vinho, ou uvas, ou algo entre os dois pairava sempre no ar. Mas gostava da Tia Maria. Gostava da forma como ela me apertava, da maneira como me mimava. Gostava até do cheiro dela, a velha. E dos longos cabelos brancos que nunca vi senão devidamente apanhados. Gostava da mancha que ela tem na ponta do nariz.
Vim o caminho todo a fitar as giestas brancas na paisagem. Não há destas maias na Maia. É definitivo: gosto das giestas brancas. Gosto muito e nem sei porquê.
Continuava angustiada com a viagem e na minha cabeça começavam a crescer ventos como aqueles que vinham do Marão. Desde que me conheço tenho horror a escolhas difíceis. Nunca gostei de ter que optar por uma ou outra coisa que gosto. Se gosto das duas, então quero as duas! Há-de haver sempre uma forma de as conciliar. E muitas vezes estive em dois aniversários na mesma noite, muitas vezes estive em concertos consecutivos, em locais distantes. Muitas vezes conciliei pessoas inconciliáveis. Muitas vezes não dormi para ter bons momentos e boas notas. E a vida sempre me foi favorável. Até hoje poucas vezes tive de abdicar de algo que quisesse mesmo ter ou fazer, estar ou ser.
Mas a minha vida está numa nova fase, mais ingrata, mais adulta, mais crua. É chegada a altura em que não me vai ser possível tudo. Não há comboios tão rápidos, não há horas tão longas, nem dias só meus. A minha angústia é essa mesmo: é a conciliação de tudo que eu quero, de tudo que eu gosto, de tudo o que eu preciso, de tudo que eu tenho de fazer.
Já se viam as águas do Douro, mas Travassinhos é um pouco mais acima. Há que subir socalcos por ruelas apertadas e despovoadas.
Passam poucos minutos do meio-dia e a tia já espreita pela janela por onde lhe entra o mundo todos os dias.
A Tia Maria, a minha Tia Maria.
A minha Tia Maria que me aperta como ninguém e me olha como ninguém. Em mais nenhum olhar vejo o orgulho que vejo nela. Sei que me adora. Sinto que me adora. E por isso tinha de vir. Por isso queria tanto vir.
A Tia Maria nunca foi casada, não queria homem para mandar nela. Não sabe escrever mais do que o próprio nome, mas aprendeu a ler pelo livro da catequese… porque queria saber todas as orações do senhor. E porque queria ler os livros de que os irmãos falavam. E leu-os. Maria era a irmã mais velha e nunca foi à escola porque tinha de ajudar a mãe a cuidar dos mais novos. A Maria tratou do campo e da vinha toda a vida. Cuidou da mãe, e depois do pai. Cuidou da casa. A Maria, esta mesma que me agarra a mão com vontade, continua a comer o que planta e colhe, e cuida da sua vinha, qual tesouro precioso. Tem o rosto gasto pelo tempo e pela vida dura de quem carrega mais do que um homem valente devia carregar. Mas é doce e delicada: aprecia e cultiva flores de todas as espécies, feitios e cheiros. E conhece-as pelos nomes. Sabe como e quando regar; sabe a época do ano em que vão espevitar. Recolhe sementes e guarda-as para me dar...
A Tia Maria fez hoje 92 anos mas não se esqueceu de nada. Têm a cabeça mais fresca que a minha e sabe todas as datas que lhe são importantes de cor. A Tia Maria usa calças (porque são de mais aconchego para o vento Sudão) e não acha mal que haja divórcio. A Tia Maria faz-me chorar, só de a ouvir contar as histórias de quando o meu pai era pequenino e lhe roubava o mel das colmeias. A Tia Maria enche-me de orgulho e de emoção quando me fala do meu rio: o Douro, o meu Douro. Aquele que me sabe a casa a cada sexta-feira.
Hoje cantei os parabéns à Tia Maria. Tinhamos um bolo e duas grandes velas vermelhas. A velha Maria bufou as velas pela primeira vez na vida e chorou, comovida, abraçada a nós. Os quatro brindamos com vinho generoso da terra.
A minha Tia Maria encheu-me o coração. E mesmo que a angústia de não a ver mais me faça chorar todo o caminho de volta, ficam os planos para Junho! E eu cresço mais um bocadinho, e aprendo mais um bocadinho do que é a vida, a família, e o ter uma profissão.
ss