14 de dezembro de 2005

Minha querida:

Há muito tempo que pensava escrever-te uma carta. Um texto que sei que nunca poderás ler, mas que me ajudará a perpetuar todo este sentimento que nutro por ti.
Pego no meu cadernito, desço as escadas e vou sentar-me ao teu lado. Desajeitada acabo por te acordar. Elevas os olhos para ver quem acaba de chegar. Levantas-te e ficas parada sobre as tuas patinhas traseiras. Pouso o caderno e ponho as duas mãos em volta do teu focinho. Tens os olhos mais ternos que já senti. Perlongo-me na tua face… percorro depois todo o teu corpo, agora tão magro. Estás tremula, fria.
Para me recordar dos velhos tempos abro as pernas e dou duas pancadinhas numa delas. Sinto-te a desdobrar, tropegamente, as patinhas traseiras e dando duas, talvez três voltas sobre ti própria, acabas por te prostrar bem juntinho a mim. A tua cabecinha fica pousada na minha perna direita e o teu corpo estendido entre as minhas pernas. Afago-te as orelhas enquanto te vou dizendo palavras doces. Sei que não as entendes, mas acho que percebes quando te falo com carinho. Não consegues compreender o significado das minhas palavras mas podes senti-las! Vais ficando mais tranquila, sinto a tua respiração a acalmar e a tosse já não é, agora, tão frequente. Também sinto que ficas mais quente.
Adormeces.
Uma vez li que os cães não dormem verdadeiramente; nunca atingem estados de profunda tranquilidade o que, supõem-se, não permite ao seu cérebro desenvolver-se mais. Mas tu estás a dormir. Profundamente! Ouço as tua respiração acompanhada de outros sons… acho que ressonas! Sorrio e fico a lembrar-me de todas as vezes que, como hoje, te deixaste adormecer, comigo. Só comigo.

Já vivemos tantas aventuras juntas. Relembro cada uma das vezes que fomos ao Gerês: quando chegávamos à parte mais difícil do trajecto, aquela que serpenteava a montanha, ela ficava com a boca semiaberta e com o corpo mole. Quando encostava o nariz frio à minha face já a adivinhava.
- Pai... pára o carro! – Em menos de um minuto já estava na berma da estrada por entre vómitos e soluços. Depois ficava a olhar para todos, procurando reprovação. A língua percorria-lhe todo o perímetro do focinho, ora para a direita, ora para a esquerda, como se nos quisesse dizer:
- Tenho sede!
Vou à mala do carro e tiro a garrafa de água que tem no rótulo o seu nome. Nunca me esqueço dela! Tem um bocal mais fino e vai lançando água em pequenas lufadas que ela consegue beber. Quando fica satisfeita afasta-se e corre para o carro, instalando-te, confortavelmente no seu lugar. Passa o resto da viagem sentadinha e com o focinho meio de fora. Adoro vê-la assim! As orelhas abanam freneticamente com o deslocamento do ar e sente-se nela um prazer enorme pelos novos cheiros que vai detectando.
Enquanto era ainda um bebezinho foi, uma vez, connosco até uma pequena praia fluvial do rio Douro. Nesse local o rio é estreito e facilmente atravessável. Sempre que iniciávamos uma viagem ela vinha, atrapalhada, atrás de nós! A meio da viagem acabava sempre por ser preciso transporta-la. Recordo-me de me virar de costas e de a pousar na minha barriga enquanto nadava lentamente para não a deixar cair! Quando me aproximava da margem eleva-a num dos braços e enquanto me propulsionava com as pernas usava o outro braço para manter a cabeça à superfície. Ela ia estranhamente calma, confiante! Como se tivesse a certeza de que eu nunca a largaria.
Recordo também, numa dessas viagens em família, quando o meu irmão decidiu fingir que se afogava. Ela estava na margem, deitadinha na toalha que eu lhe tinha estendido... Quando ouviu os gritinhos dele e o som das mãos a chapinharem na água voou para o rio e nadou com uma energia que nunca lhe tinha visto. Quando chegou ao meu irmão cravou-lhe os dentes num braço puxando-o para a superfície. Absolutamente impressionante!! O meu irmão não se apercebendo bem do que se passava lutava para se libertar, mas ela agarrava-o ainda com mais força. Com a minha ajuda viemos os três para a margem. Ela lançou-se então ao meu irmão lambendo-lhe toda a cara… e os braços. Só nesse momento percebemos o que se tinha passado e prometemos nunca mais brincar com assuntos sérios.
Relembro as doenças, os dias maus. Perco a conta às horas tão longas que passamos, sempre juntas, no veterinário; aos pontos que todos os dias desinfectava, até que os pudesse retirar. Os comprimidos que, com paciência, te fazia engolir; a comida que, muitas vezes, tive de te dar à boca; as sessões intensas de fisioterapia que tantas lágrimas provocavam, às duas… Todos estes são momentos que guardo, meticulosamente, na memória.

Acordas.
Por entre murmúrios incompreensíveis levantas-te e encaras-me. Os teus olhos tocam profundamente nos meus e ficamos assim, como que a decorar-nos. Há quase três anos que só temos o fim de semana para partilhar e desde então passamos muito mais tempo a sentirmo-nos...
Fazes-me tanta falta!! És a minha companheira dos dias tristes. Quando éramos as duas mais novas, costumava correr para ti cheia de lágrimas. Conversava contigo: fazia mil e uma perguntas… propunha mil e uma respostas. Não me ajudavas com palpites ou concelhos, mas olhavas-me cheia de ternura e, muitas vezes, lambias as minhas lágrimas. Colocavas o teu focinho húmido na minha testa e ganias ao som dos meus soluços, como que a tentar dizer-me que partilhavas a minha dor. Eu adorava ficar ai, no teu colo, como costumava dizer-te. Abraçava-te com força e sentia o teu coração a bater até que as nossas respirações se alinhavam.


Hoje, já é tarde na noite mas vim-te acordar porque estou cheia de tristeza. Corre-me nas veias uma sensação de revolta que me faz mal, que me torna vazia e rude… seca! Cada vez é mais difícil observar-te o olhar… Está a ficar mais pálido, embranquecido com as cataratas que não permitem que eu possa ver o brilho que dantes tinha. Percorro o teu focinho com o meu dedo... Deste a ponta fria, atravessando os olhos até atingir o topo da cabeça. Agora já não piscas os olhos. Os teus reflexos estão lentos e já me conheces os hábitos… sabes que não te vou ferir. Encostas a cabeça ao meu peito e agarro-te com mais força. Não seguro mais as lágrimas e começo a soluçar!
A época de Natal está, para mim, associada a acontecimentos demasiado tristes que me fazem viver um natal diferente de todos as outras pessoas. Nesta época, qualquer problemazinho que me possa afectar é, por mim, agravado… tomando quase o tamanho e a força destrutiva de um tsunami.
Levantas a cabeça, e como já não fazias há muito, secas as lágrimas que me descem pela face. Primeiro encostas o focinho à minha bochecha esquerda, depois à direita, sempre com uma ternura que só encontro em ti. Olho-te mais uma vez antes de pousares a cabeça no meu ombro. Ficamos assim, longos minutos, enquanto vou reflectindo sobre meu dia… sobre as importantes decisões que havia tomado essa tarde, sobre as palavras erradas, e as acertadas.
- Sabes, minha querida… já me tinha esquecido de como é bom “falar” contigo! – digo-lhe baixinho.
São 5 da manhã… o sono começa a vir, e não lhe quero resistir. Pego nela ao colo e coloco-a na sua caminha. Cubro-a com a mantinha quentinha que lhe comprei para este natal, e enquanto lhe afago as orelhas mais uma vez, peço-lhe que não se esqueça da promessa que um dia a fiz fazer:
- Não te vais embora sem mim!!! Prometeste!
Dou-lhe um último beijo de boa noite, e penso: “és uma cadela maravilhosa”!!!

ss

4 de dezembro de 2005

É destes momentos que somos feitos...

Saio do restaurante. Abandonado, numa pequena poça formada pela abundante chuva de Novembro, jaz um cravo. Detenho o olhar no vermelho que contrasta com todos as cores mornas de um dia triste... Cada pingo faz pequenos círculos na água que reflecte imagens retorcidas de gaivotas num fundo cinzento de nuvens.
- Toma!
Enquanto me perdia nas sensações de mais um dia pálido, levantaste o cravo do chão, e sem que eu me apercebesse, já o tinha na mão.
- Achas que a avó votaria no Soares?
Sorrimos os dois num abraço cúmplice de sabor a saudade... que não passa, que não dói! Mas que nos une na mais bonita memória que sabemos viver.


ss

 
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