24 de agosto de 2009

Fotografia de Família

Lembro-me de ser pequena, e por pequena entenda-se de pouca idade, além da pouca altura, e andar pelas ruas com a máquina do pai. A Pentax era dotada de um certo tamanho e de um peso que não era propriamente negligenciável quando comparado com o meu. Mas eu adorava aquele instrumento, achava-o fascinante. O meu pai, com a paciência pedagógica que sempre o caracterizou, passava longas horas a explicar-me como funcionava. Quando tirávamos o rolo, que era necessário re-enrolar com uma manivela, abríamos a aparelho e era como um novo mundo a revelar-se. Ali estavam as entranhas daquele instrumento mágico capaz de reter a realidade. Eu ficava como que enfeitiçada a ver o diafragma abrir-se. Mais ou menos, de acordo com o que eu mandava. Mudava a velocidade de disparo e ficava excitada com a obediência sábia daquelas lâminas que podiam ser rápidas ou demorar-se. E o som da Pentax do Pai: é inesquecível o clap daquele diafragma que me hipnotizava.
Já me vejo, pequena, de duas mãos a abraçar o tesouro que o pai me depositava confiante. Uma mão controlava a objectiva a outra controlava o disparador. Todas as funções da máquina eram de controlo manual por isso o meu pai gastou longas horas explicando-me cada uma delas. Deu-me noções de física quando eu nem sabia fazer as contas de dividir com números decimais (bem... nem sei se alguma vez o aprendi!). Eu bebia, orgulhosa da sabedoria do pai, toda aquela informação que me tornaria possuidora da capacidade de captar imagens para sempre. Eu ia ser capaz de as tornar eternas dentro da minha eternidade. Era feliz.
Quando fui para o quinto ano tive como presente uma Olympus “série miu”. Acabei por não tirar tantas fotografias quanto queria porque a mesada não dava para comprar os rolos. E eu fazia-me de esquisita e só queria rolos 400ASA, “porque eram os melhores para fotografias com a pouca luz” ideais para os dias de nevoeiro que fustigavam esta minha cidade. A revelação também era cara, mas essa dava para adiar, até o pai se compadecer da minha caixinha dos rolos usados e os levar ao senhor Cândido para revelar em conjunto com os dele. O senhor Cândido conhece-me desde que era mais baixa que o balcão onde hoje pouso a pen-disk e lhe peço as fotografias para ontem. O senhor Cândido dizia-me sempre que eu tirava boas fotografias, elogiava as perspectivas e prometia caprichar nas cores.
- Assim dá gosto revelar fotografias!
Eu, de brilho nos olhos, caminhava de volta a casa num flutuar. Inchada de orgulho a achar-me a melhor da minha rua. Ainda hoje o senhor Cândido gosta de encher de piropos as minhas fotografias. Bem sei, agora, que é lábia de quem gosta muito do dinheiro que lá deixo cada vez que mando revelar uma catrefada de fotografias… Talvez não! Um dia o senhor Cândido levou-me ao laboratório e eu logo quis fazer um igual na minha cave. E fiz! Improvisado. Obrigando a avó a costurar cortinas escuras e o pai a comprar uma lâmpada vermelha caríssima. Foi bonita a aprendizagem, deu-me gozo, mas não mantive a paciência e nem me dei mais ao trabalho de preparar todas as soluções. Ao final de contas eu até gostava daquelas visitas ao senhor Cândido.
Contudo, não é apenas ao meu pai e ao senhor Cândido que devo este interesse…
Hoje, sentada no sofá da minha avó com um álbum ao colo apercebi-me, mais do que nunca, porque gosto de fotografia. A minha avó é uma mulher moderna, como eu gosto de dizer. É mais moderna do que muitas mulheres da minha idade. E enche-me de orgulho. Quando a tradição da família era trabalhar com as linhas, ser modista, fazer malhas, ela foi trabalhar para a FOCAR. A minha avó foi toda a vida empregada de uma loja de fotografia. Revelava, retocava, coloria, vincava, recortava…
Hoje, naquele sofá a avó mostrou-me fotografias: muitas, muitas!! Fotografias de quando era nova. Tem centenas delas. Fotografias do pôr-do-sol da nossa praia Atlântica, fotografias de eventos importantes passados na sua invicta cidade. Há na casa dos meus avós uma reportagem precisa e bem focada de todo um século de fotografia. Vejo-a entusiasmada com a reportagem da vinda do Humberto Delgado ao Porto: mantas nas janelas, gente de sorrisos esperançados, braços no ar. A inauguração do Estádio do seu Futebol Clube do Porto: bandeiras ululantes numa cidade extasiada. São álbuns de cartolina preta bem organizados no eixo do tempo.
Contava-me que as pessoas deixavam as máquinas com o rolo para que fosse retirado já no laboratório e que, na hora do almoço, ela e os colegas aproveitavam e gastavam os últimos centímetro de filme tirando fotografias nas traseiras da loja. A avó tem imensas fotografias com os colegas da loja e um registo do seu envelhecer digno de uma estrela de teatro. Aproveitando apenas os restinhos de película conseguiu uma reportagem fidedigna da mudança dos estilos dos cabelos, dos vestidos, dos acessórios. De lábios sempre pintados, como sempre, posava natural, sorridente para a objectiva. São fotografias de que qualquer neta se orgulharia!!
Hoje, na ternura dos avós conheci mais um pouco da minha família. Revi a minha (bis)avó Corina: o meu orgulho da infância, a matriarca inesquecível de uma família que me faz falta. Mas as fotografias daqueles álbuns começavam desde mais cedo. O padrinho do meu avô era aficionado da fotografia e em 1920 tinha já um aparelho capaz de captar fotografias bem nítidas. Tinha, além do engenho, muita arte. Há dezenas de fotografias do meu avô. Mas não daquelas fotografias preparadas, com vestidos imaculadamente engomados e cabelos meticulosamente penteados. Não! São instantâneos deliciosos da vida de uma criança numa quinta. Há retratos felizes do menino: retratos do afilhado e das criadas que sempre que podiam lá se punham ao alcance da objectiva. Há fotografias preenchidas de “parolos” lá da aldeia que vinham pedir que lhes tirassem uma fotografia. Mas a estrela do fotógrafo era o menino: lá está ele, brincando com uma vaca, um gato, uma galinha. Chafurdando no ribeiro, trepando a árvores, traquinando no meio da vinha.
Há um legado de inestimável valor naqueles álbuns.
Hoje, o meu avô prometeu-me a máquina fotográfica do seu padrinho. Ele deixou-lha, qual tesouro precioso e o meu avô quer dar-ma a mim. Mas só quando voltar, para garantir que eu volto, diz-me. Eu quero a máquina, sim, e quero as fotografias. Aquele tesouro a preto e branco. Aquela história do Porto e da minha família contada com pedacinhos de realidade com cheiro a livro velho. Eu volto, asseguro-lhe.
Hoje, voltando carregada com as framboesas que avós congelaram para mim, apercebi-me que nunca serei feliz num apartamento pequeno. Quero espaço para todas estas memórias físicas e quero terra para ter framboesas deliciosas como estas que venho a comer pelo caminho até casa.

ss

17 de agosto de 2009

A bola está do teu lado...

9 de agosto de 2009

"Façam o favor de ser felizes!"

Raul Solnado

7 de agosto de 2009

No meu deserto*

Todo o indivíduo devia experimentar o deserto pelo menos uma vez na vida. Não precisa ser muito tempo; bastam alguns minutos para ele nos esvaziar. O silêncio é tão límpido que chega a incomodar. Respiramos cada vez menos para não quebrarmos aquela magia. Mais baixo. Mais suave. Sem ruído. Não me oiço nem oiço aquelas quatro pessoas que vieram comigo. Ninguém se move. Ninguém respira. Os olhos parecem inertes, ninguém pestaneja. Dir-se-ia que ninguém existe. Só esta areia imensa, este amarelo torrado pelo Sol, este dia que foge. E, lá no fundo de lugar nenhum há uma bola de fogo que se deita. Desce visivelmente de encontro ao calor que vem da terra. Vai e vai e vai. Acaba-se. O amarelo fica mais azul e uma brisa suave e fresca nasce com as primeiras estrelas.
Adivinhava-se a noite mais estrelada do Verão. O silêncio quase podia ser interrompido pela batida seca dos corações extasiados. Oh o deserto. Mas o tempo chegava ao fim. O motor do jipe foi ligado. Quebrou-se o silêncio. A música árabe, maluca, tribal estala os ouvidos cheios de nada. Há tempo para um último encher de pulmões com este ar de terra inóspita agora povoada de lacraus emergindo da areia. Oh o deserto.
Dunas e dunas da mesma areia agora cor de cinza. O balanço violento do veículo embala as imagens que parecem estampadas no sorriso de cada um. Oh o deserto. O cheiro a seco, a tâmara, a sol enche-nos já de saudade daquele momento. O cheiro do entusiasmo, da realização. O cheiro da vida, doce, quando somos os quatro. ss

*isto sou eu a pedir um certo livro...

ss

5 de agosto de 2009

Coimbra

Tenho Nick Drake a encher-me a casa. Tenho San Pellegrini fresca com uma rodela de limão. Tenho um corpo cansado recostado no sofá que demorei quase uma hora a montar. Mas que montei. Consegui-o sozinha. É meu!
Tenho calor, calor que vêm do chão. Do alcatrão. E tenho saudades, muitas, da minha Coimbra.

ss

 
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